quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Para viver um grande amor

Vinícius de Moraes
Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e riso

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois
ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.


Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e
ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo
uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma
espada — para viver um grande amor.


Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho
amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande
amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja
apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o
grande amor.


Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de
que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois
quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa
imensa, indizível liberdade que traz um só amor.


Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.


Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é
preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar
sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também,
amortalhada no seu finado amor.


É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito
mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do
que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a
esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...


Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas,
molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de
melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica
e gostosa farofinha, para o seu grande amor?


Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto
e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É
preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a
mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o
amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem
covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.


É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e
ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.


Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Pessoas interessantes tem falhas...


Uma das coisas que fascina em San Francisco é ela estar localizada sobre a falha de San Andreas, que é um desnível no terreno da região que provoca pequenos abalos sísmicos de vez em quando e grandes terremotos de tempos em tempos.
Você está mui faceiro caminhando pela cidade, apreciando a arquitetura vitoriana, a baía, a Golden Gate, e de uma hora para outra pode perder o chão, ver tudo sair do lugar, ficar tontinho, tontinho.

É pouco provável que vá acontecer justo quando você estiver lá, mas existe a possibilidade, e isso amedronta mas ao mesmo tempo excita, vai dizer que não?
Assim são também as pessoas interessantes: têm falhas.
Pessoas perfeitas são como Viena, uma cidade linda, limpa, sem fraturas geológicas, onde tudo funciona e você quase morre de tédio. Pessoas, como cidades, não precisam ser excessivamente bonitas.

É fundamental que tenham sinais de expressão no rosto, um nariz com personalidade, um vinco na testa que as caracterize.
Pessoas, como cidades, precisam ser limpas mas não a ponto de não possuírem máculas.
É preciso suar na hora do cansaço, é preciso ter um cheiro próprio, uma camiseta velha pra dormir, um jeans quase transparente de tanto que foi usado, um batom que escapou dos lábios depois de um beijo, um rímel que borrou um pouquinho quando você chorou.

Pessoas, como cidades, têm que funcionar, mas não podem ser previsíveis.
De vez em quando, sem abusar muito da licença, devem ser insensatas, ligeiramente passionais, demonstrarem um certo desatino, ir contra alguns prognósticos, cometer erros de julgamento e pedir desculpas depois, pedir desculpas sempre, pra poder ter crédito e errar outra vez.
Pessoas, como cidades, devem dar vontade de visitar, devem satisfazer nossa necessidade de viver momentos sublimes, devem ser calorosas, ser generosas e abrir suas portas, devem nos fazer querer voltar, porém não devem nos deixar 100% seguros... Nunca!! Uma pequena dose de apreensão e cuidado devem provocar.
Nunca se deve deixar os outros esquecerem que pessoas, assim como cidades, têm rachaduras internas e podem surpreender.

Falhas. Agradeça as suas, que é o que humaniza você, e nos fascina.

(Autoria desconhecida)